30 de abril de 2010

Agricultura, caça e pesca Mbyá-Guarani

Texto sobre a alimentação e economia dos Mbyá de Sâo Miguel das Missões-RS, Brasil

Por Cristian Pio Ávila

A principal atividade econômica tradicional produzida na antiga tekohá era a horticultura, mais especificamente o cultivo de carboidratos, complementados por atividades de caça, pesca (consumo proteico) e coleta.

Segundo Raúl M. Crovetto (1968), do cacique dependia a decisão sobre a extensão do cultivo e o início desse e sobre quais indivíduos se ocupariam do preparo do solo e dos trabalhos pertinentes a isso, como limpeza do terreno, remoção do solo, de pedras, corte de arbustos, etc. Tais decisões só eram tomadas depois de o cacique reunir-se com os chefes das famílias extensas.

Entre os povos agricultores, as relações de parentesco dominam estrategicamente a vida social, funcionando como sistemas de autoridade, e, desse modo, como relações políticas que permitem realizar o processo de produção regularmente e organizar a vida social. Acrescento a isso, que, hoje, como deveria ter sido anteriormente também, o karaí é quem indica a melhor data para começar o plantio e a semeadura, através da indicação das divindades, em suas rezas e sonhos.

Schaden enfatiza:

(..)um predomínio extraordinário da religião em todas as esferas da cultura, inclusive na economia, a ponto de as atividades econômicas aparecerem , não raro, como simples pretexto para a realização de cerimoniais de contato com o sobrenatural e controle dos poderes pessoais que se julgam ter influência no destino dos homens. Quer seja um puxirão, a colheita dos produtos da roça, a partida para uma viagem, o aparecimento de qualquer fenômeno inesperado ou invulgar - tudo, enfim, pode ser motivo para rezas e danças rituais (Schaden:op.cit.:38).

Maurice Godelier nos informa que, nas sociedades primitivas e rurais, o trabalho é uma operação dupla, constituída pelo aspecto técnico e pelo aspecto mágico e ritual. Malinowski demonstrou, também, que os habitantes das ilhas Trobriand, embora não ignorassem que os cuidados prestados por um horticultor à sua horta contribuíssem para o êxito da colheita, afirmavam que somente o trabalho para garantir a colheita não bastava, já que a magia era prática indispensável para isso.

Está inclusa aí a idéia de que as causas ocultas e as forças invisíveis que controlam a natureza fazem parte de uma realidade significativa nessas sociedades. Atuam sobre o plano terrestre tanto o natural (e nele, inclusa, a ação humana) quanto o sobrenatural. O sagrado torna-se, portanto, uma categoria prática da experiência humana diante da natureza e a sociedade. A partir da capacidade de uso das práticas mágicas, o homem sente-se capaz de inserir-se na cadeia das causalidades necessárias à ordem natural. É a própria magia o estado da cultura atuando sobre a natureza.

Na agricultura mbyá, cabe às mulheres e crianças a semeadura, a limpeza do roçado e a colheita. Corvetto afirma que as roças eram coletivas e a produção se dirigia às necessidades de cada família, porém nos parece pouco plausível essa afirmação, dado o caráter organizacional de sua produção, relizado em famílias extensas. Infiro que tenham existido, como acontece até hoje, roças coletivas, que, no entanto, são cultivadas para serem consumidas em momentos de festas religiosas que envolvam toda a comunidade.

Antigamente, os terrenos das roças localizavam-se próximos às aldeias, porém, um pouco afastadas das habitações, o que, atualmente vejo de forma diferente, com às roças bastante próximas as casas, dado ao meu ver, ao exíguo espaço de que dispõem dentro da aldeia para o cultivo. A superfície do cultivo familiar é relativamente pequena, não ultrapassando cinco hectares, definida pelo objetivo da produção - o consumo próprio.

O terreno para o plantio era utilizado por quatro ou cinco anos consecutivos, para depois ser abandonado, em razão da perda da fertilidade do solo. Após esse período, costumava-se trocar a roça para outro terreno próximo. Num tempo relativamente curto, toda a terra vizinha ao aldeamento já havia sido aproveitada, obrigando sua população a migrar para outro território e fixar novo acampamento.

O cultivo guarani era feito através do sistema de corte e queimada - a coivara. Segundo Souza, os passos desenvolvidos por esse sistema eram:

a) derrubada das árvores de uma área florestal, utilizando machados (...);

b) amontoamento dos galhos para sua secagem ao sol;

c) queimada das folhas e dos ramos menores, sobrando mais ou menos intactos os troncos mais grossos;

d) plantio executado entre troncos, tocos e galhos semicarbonizados (...)

e) limpeza manual e proteção das mudas cultivadas;

f) colheita.

Segundo o observado no período em que estive na Reserva do Inhacapetum, poderia dizer que, pelo menos, os quatro primeiros passos do sistema tradicional de cultivo não foram realizados. Alguns fatores influenciaram nisso: a característica das terras da Reserva, cuja maior parte já eram campos limpos ou “campos de vaca”, como são chamadas na região, e o preparo da terra ter sido realizado por tratores da Prefeitura e por arados de carroça de bois por um dos Mbyá que conheciam a técnica de seu uso.

Geralmente, o roçado dava-se no mês de maio para semear-se nos meses de setembro e outubro. No ano de 2004, o karaí ordenou que semeassem o milho no período da lua cheia de agosto, o que, devido ao atraso das sementes, só foi possível na lua de setembro.

A literatura confirma que os períodos anuais em que o trabalho mais se acumula dentro das áreas guarani são os meses de agosto e setembro, quando se dá a queima e o plantio, enquanto na época do mantimento novo (ou a colheita do milhos nos primeiros meses do ano) reduz-se a atividade.

Entretanto, o período de trabalho mais intenso nas roças da aldeia é, também o da “changa” (trabalho remunerado) nas roças dos fazendeiros e sitiantes. E, como a changa é um dos únicos meios de que o Mbyá dispõe para conseguir algum dinheiro, atrasa o trabalho na própria roça, a fim changuearam nas fazendas vizinhas. Assim, quanto mais trabalho os Mbyá despendem na changa, mais dependentes vão ficando dos ganhos desse tipo de produção, já que não cultivam suas roças o suficiente para garantir-lhes a total subsistência complementada pela caça e extratividade. Fecha-se, assim, o círculo vicioso da dependência material aos grupos exógenos.

A colheita realiza-se de forma manual, salvo os tubérculos que são retirados com o uso de pás ou enxadas. Essa colheita se dá à medida que vão fazendo uso dos produtos, e guardam somente algumas sementes de milho, de amendoim e outros grãos para futuras semeaduras. Plantavam e ainda plantam, segundo o regime de consórcio, para um maior aproveitamento da superfície de plantio. Geralmente plantavam juntos o milho tupi e o feijão soperi. Na Reserva do Inhacapetum, reconheci plantados, em regime de consórcio, o milho, a abóbora e a melancia.

O milho, ou avatí constituí-se no produto cultivável de maior importância na vida guarani, existindo quase sete variedades desse. A tradição guarani, assegura:

Peteï ñó raca ?é orerembi ?urä ome ?é oreve Tupã; upeva co Avatí héravae.” - traduzindo: “Nos asseguraram que Deus nos reservou um só alimento para nós e este alimento é o milho” - (PEREYRA, 1948:434-5).

O calendário religioso e social confunde-se com o do cultivo do milho. O ano guarani inicia-se pela festa do avatí-kiri ou “batismo do milho” Na lavoura guarani, o milho alcança protagonismo em relação a qualquer outra espécie. É do próprio milho que o Sol fez sua irmã, a Lua, segundo uma das lendas da criação do mundo mbyá.

Há, porém, uma diferenciação entre o milho guarani - colorido e de grão mole e o “milho do branco” - de grão duro, amarelo-esbranquiçado. A ritualização da vida passa pelo amadurecimento do milho guarani, especialmente. A roça desses dois tipos de milho são, inclusive, distantes uma da outra, para evitar o cruzamento.

Shaden e outros etnógrafos fazem menção a diversos rituais que acompanham a produção do milho; eu, no entanto, só ouvi menção a um em específico, que é o da época do plantio (as orações na casa de reza para saber quando deveria ser feita a semeadura) e do batismo do milho na primeira colheita, que se confunde com o batizado das crianças.

O tempo mbyá não é uma seqüência de objetivos intermináveis, pautados pela mentalidade cartesiana, objetivista e prática, uma racionalidade instrumental voltada à busca de objetivos ou da racionalidade dos meios em relação aos fins, própria da sociedade ocidental. É um tempo muito mais pautado nos ciclos naturais, do ambiente que cerca a comunidade, impostos, por sua vez pelo sobrenatural. Um “todo o tempo” em contraste com o “tempo para tudo”, marcado pelo relógio.(Chamorro, op.cit. 203) Conforme eles próprios dizem:

Para o guarani, o dia não é uma, duas, três, quatro horas...Nosso dia é todo o dia e a noite. É 24 horas, todas juntas. O branco vive correndo atrás das 24 horas, enquanto o guarani espera elas chegarem...”

Seu tempo corresponde a um tempo no qual as preocupações econômicas (em geral, as pautadoras de seu ritmo) são intimamente ligadas as preocupações sobrenaturais. Seu “ciclo ecológico”, nos termos utilizados por Evans-Pritchard, é um ciclo da vida religiosa intimamente ligada a esse ciclo natural, de modo preponderante, o ciclo do milho. A ritualística acompanha todas as esferas de sua cultura e, como sustenta Schaden, não raro, as atividades econômicas aparecem como simples pretexto para a realização de cerimônias de contato com o sobrenatural. (Schaden, 1974:38)

Em síntese, tudo que se relaciona ao milho associa-se ao mundo sobrenatural, e talvez o seu cultivo seja a atividade que mais mantenha o vínculo assegurado por uma tradicionalidade religiosa.

Outros cultivos bastante importantes para o Guarani são a mandioca, que consomem o ano inteiro, respondendo pela maior parte de sua alimentação, a melancia, nos meses do verão, e o amendoim, pouco visto na Reserva do Inhacapetum, entretanto.


A caça , a pesca e a coleta

A caça faz parte cotidiana da vida Guarani e, entre os animais silvestres mais visados, estão: o tatu (Eufractus sexcinctus gilvipes), o quati (Nasua narica), o lagarto (?), a preá (Cavia porcellus aperea), a capivara ou capincho(Hydrochaeris hydrochaeris) , o porco do mato (?), a paca (Coelogenys paca) e aves, como pombas (?) e outras.

A caça consiste numa atividade individual e masculina. São os homens que, pela parte da manhã embrenham-se no meio da mata, para caçar animais ou verificar suas armadilhas. Como recurso de caças, utilizam-se, principalmente, dos cachorros caçadores, animais domesticados e treinados para captura de outros animais; de armadilhas apropriadas para cada espécie (mundéus ou monde para mamíferos e laço ou ñu ?ã para mamíferos e aves) montadas com recursos da própria mata como toras de madeira e cipós, arco e flechas e, em alguns casos, de pequenas espingardas. O produto da caça é, geralmente, consumido em um banquete preparado para toda a comunidade. Parece-me que o ato da caça bem sucedido e a sua oferta ao banquete conferem ao caçador certo prestígio em relação aos demais membros do grupo.

A pesca tem importância secundária na vida guarani. É feita através de linha e anzol na beira do rio. Antigamente, era realizada por meio de arco e flecha. Também utilizam armadilhas como o paris - espécie de cesto na descida de uma barragem natural do rio, o qual aprisiona grande quantidade de peixes em seu interior. O paris é deixado dentro do rio por dias, até que fique cheio. Os peixes mais procurados são o dourado (?), o jundiá (?) e o pacu (?). Além disso, usam a técnica do pira nupã, pesca feita a partir do uso de plantas venenosas, como, por exemplo, o timbó.

A extração de frutíferas constitui-se numa atividade eminentemente infantil. As crianças passam horas no mato recolhendo frutas silvestres e enchendo suas garrafas pet com essas frutas. São as mais comuns: o guabiju, a guabiroba, a pitanga e o araticum. Depois de colhidas, as frutas são consumidas durante todo o dia por crianças e adultos, como se fossem balas naturais. (De acordo com o que os próprios Mbyá falam - “Frutinhas são as balas do Guarani). Extraem, também, mel silvestre de variados tipos de abelhas como a jate ?í (Trigona jaty), tapesu ?a (Trigona tubiba), entre outras.

Todas essas atividades resultam de uma complexa tecnologia de manejo do ambiente, a fim de não esgotá-lo. No caso mbyá, “o manejo exercido sobre as áreas de captação desses recursos motivara deslocamentos periódicos dos grupos, sempre em busca de locais onde pudessem encontrá-los de forma abundante.”(Garlet, op.cit.105) Hoje, porém, a reprodução dessas atividades depende da possibilidade de encontrar ecossistemas relativamente preservados, algo que as terras oferecidas aos Mbyá, no Rio Grande do Sul, não contempla.


Fonte:

http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/4611



- Veja também:

Trabalhos na UFRGS para a sustentabilidade comunitária

Materiais construtivos Mbyá

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