26 de março de 2010

Materiais construtivos Mbyá

Por Letícia Thurmann Prudente

Os materiais construtivos da casas construídas pelos Mbyá são recursos naturais típicos do Bioma Mata Atlântica, especialmente da Floresta Ombrófila Densa (Mata Atlântica, stricto senso). São espécies vegetais associadas a valores simbólicos e culturais desse povo. Os Mbyá dão preferência ao uso de algumas espécies por serem consideradas sagradas, principalmente para a construção das casas de reza (opy). Na realidade, são espécies que possuem características físicas adequadas à construção, tais como durabilidade e resistência, mas os Mbyá costumam exaltar mais seus aspectos espirituais. A exemplo, Morinico se refere às espécies arbóreas preferidas como “árvores de alma forte”. Apresenta-se no quadro 2 uma lista das espécies vegetais utilizadas na construção Mbyá.



Essas espécies vegetais listadas no quadro 2 foram identificadas nos tekoá do Estado por alguns pesquisadores locais, tais como Zanin (2006) e Freitas (2004; 2006), reunindo-se, dessa forma, informações de campo averiguadas e bibliográficas existentes. Podem ainda haver ainda outras espécies empregadas na construção Mbyá. Algumas dessas espécies também servem para outros fins, como artesanato, medicina, xamanismo e alimentação, além da construção, segundo Freitas (2004).

No Tekoá Nhüu Porã, foram averiguadas o uso de algumas dessas espécies nas construções das casas de xaxim, sendo que o próprio xaxim (samambaiaçu) foi inserido a essa lista por esse tekoá, já que é o único que o utiliza para esse fim no RS. Serão descritos dados referentes a aspectos físicos e simbólicos das espécies vegetais de maior relevância e preferência para os Mbyá no contexto deste trabalho como: cedro ou yary (Cedrela fissilis), taquara-mansa ou takua eteí (Merostachys clausenii), samambaiaçú ou xaxim (Dicksonia selowiana) e cipós ou yxypó4.

Cedro (Yary)

O cedro (Cedrela fissilis), ou yary em Guarani, é uma das espécies arbóreas preferidas como elemento estrutural por suas características físicas apropriadas e por sua importância na cosmologia Guarani. Os Guarani o relacionam com uma divindade chamada Yvyra Nhamandú (CADOGAN, 2003). É uma espécie associada aos mitos de criação e sustentação do mundo, sendo uma das primeiras árvores criadas para apoiar e sustentar a abóbada celeste, de acordo com Cadogan (1959 apud COSTA, 1989). O karaí do Tekoá Nhüu Porã também cita o cedro como sendo a própria divindade do sol (Nhamandú) na Terra e, por isso, possui muita energia de proteção e cura, devendo ser utilizada na “casa do Guarani” (ASSECAN, 2007, p.14). Cabe citar que o cedro também é utilizado na produção do fogo (elemento fundamental para as culturas indígenas), na medicina tradicional e na produção de artesanato, além de suas sementes alimentarem alguns animais silvestres como o quati (COSTA, 1989; ASSECAN, 2007; FREITAS, 2004).

É utilizado como pilares e vigas nas casas construídas pelos Mbyá, possuindo diâmetros adequados e alturas suficientes para o aproveitamento de apoios em forma de forquilhas. No Tekoá Nhüu Porã foram encontradas algumas espécies de cedro em uma mata ciliar de um arroio próximo, como mostra a figura 34. Também são apresentadas imagens de sua utilização como pilares estruturais e vigas da cobertura nas construções da casa de xaxim.



4.3.3.2 Xaxim (Samambaiaçu)

O xaxim ou samambaiaçu (Dicksonia selowiana) é utilizado como vedação lateral das casas do Tekoá Nhüu Porã especificamente. Sua importância como material construtivo surgiu no RS a partir desse tekoá, já sendo usado como tal nos tekoá existentes na Argentina, segundo o cacique. Esse Mbyá relata que, quando chegaram nesse local, buscaram empregar o xaxim da mesma forma que a palmeira sagrada denominada pindó, da qual utilizam tanto o caule quanto as folhas. No caso do xaxim, utilizam apenas o caule, pois suas folhas não possuem características propícias para serem usadas como cobertura, ou mesmo inseridas nas paredes, como no caso das folhas de pindó.

As paredes das casas de xaxim do Tekoá Nhüu Porã feitas do tronco do xaxim são muito eficientes quanto ao isolamento térmico. Isso se deve ao fato de esse tronco compreender uma massa fibrosa constituída “inteiramente de raízes adventícias entrelaçadas” (FERREIRA, 2004, p.2083). Assim, a parede fica larga e permeável, permitindo a concentração de ar que auxilia no equilíbrio entre a temperatura interna e externa da casa. A figura 35 apresenta espécies de xaxim encontradas na borda da estrada que leva ao Tekoá Nhüu Porã e alguns troncos coletados pelos Mbyá, além da sua utilização nas paredes.



Os Mbyá cortam os troncos de xaxim ao meio no sentido transversal e o colocam verticalmente, intercalando as partes mais largas ora para cima e ora para baixo, como mostra a parede da figura 35. Os troncos dessa figura foram encontrados no tekoá vizinho ao Tekoá Nhüu Porã, no Tekoá Ka ?aguy Pau (Terra Indígena da Varzinha). Os Mbyá desse outro tekoá tinham o objetivo de usá-los para construírem uma casa de artesanato, considerando a referência das casas do Tekoá Nhüu Porã, mas não chegaram a construí-la. Cabe citar que os Mbyá do Tekoá Nhüu Porã, mais especificamente o cacique, chegaram a construir uma casa de xaxim no município de Taquara para o Museu Antropológico do Rio Grande do Sul. Essa foi uma oportunidade de expor a cultura Guarani e de vender o artesanato, segundo narra o cacique. Mas ele também conta que não chegou a ser muito positiva, pois venderam muito pouco artesanato e, com essa casa fora do tekoá, não receberam mais as visitas das escolas locais como ocorria antes.

Os troncos de xaxim eram aproveitados exacerbadamente por floriculturas pela sociedade não-indígena até pouco tempo, mas hoje o xaxim é considerado uma espécie em fase de extinção, sendo legalmente proibida de ser coletada. Esse fato traz algumas controvérsias em relação ao seu uso pelos Mbyá no Tekoá Nhüu Porã. Porém, eles o utilizam apenas para a construção de suas casas e não o comercializam. Isso está coerente com a legislação brasileira através do Estatuto do Índio, que garante o uso exclusivo dos recursos naturais em terras indígenas, segundo seus costumes e tradições, desde que para o seu benefício e não para fins econômicos e comerciais (BRASIL, 2006).

Taquara-mansa (Takuá eteí)

A taquara-mansa (Merostachys clausenii) é uma das espécies de taquara utilizadas pelos Mbyá como material construtivo. Denominada takua eteí em Guarani, que significa “taquarinha verdadeira”, está relacionada a um mito sobre uma heroína divinizada chamada Takuá Vera Chy Ete (CADOGAN, 2003). Além da construção, também é usada para outros fins, como produção do artesanato, instrumentos musicais e, ainda, segundo Cadogan (2003), os Mbyá aproveitam para se alimentar de larvas comestíveis que se desenvolvem periodicamente nos taquarais secos dessa espécie.

Os Mbyá usam a taquara-mansa na forma de feixes macerados (amolecidos por batida) que formam uma espessa camada de cobertura. Além disso, também a utilizam inteiriças ou em tramas como vedação lateral das paredes, recebendo muitas vezes o barro como revestimento. Consideram que é melhor como material construtivo de cobertura do que o capim (capí) ou as folhas de pindó (palmeira) também utilizados para esse fim, segundo Morinico. Esse Mbyá explica que a taquara-mansa na cobertura é mais tradicional que o capim, pois esse é influência da sociedade não-indígena trazida pelos Guarani do Paraguai para o Brasil. Já o no caso do pindó, por ter sua importância na cosmologia Mbyá, suas folhas seriam o material preferido, porém não há em quantidades necessárias para esse fim nas áreas indígena, ao contrário da taquara-mansa. Além disso, Zanin (2006) acrescenta que os Mbyá preferem usar essa taquara por ela ter mais durabilidade do que as folhas de pindó, dependendo da execução e da espessura da camada da cobertura.

No Tekoá Nhüu Porã, as coberturas de taquara-mansa das casas estão com problemas de infiltração de água, sendo necessária atualmente a troca ou o acréscimo de taquaras sobre as existentes para aumentar a espessura da cobertura. Porém, nesse momento, essa espécie encontra-se em período de seca em toda a região de sua abrangência. O cacique desse tekoá explica que terão de esperar oito anos para poderem coletá-la e utilizá-la novamente em suas casas. Segundo Zanin (2006), essa é uma espécie de taquara que floresce de 30 em 30 anos e, durante esse período, os Mbyá ficam de cinco a sete anos sem material para cobrir suas casas. A figura 36 mostra os taquarais secos encontrados ao longo da estrada que leva ao Tekoá Nhüu Porã e o uso dessa espécie como cobertura.



O problema atual da falta dessa taquara foi discutido com o cacique, que se colocou aberto a sugestões e soluções, como a viabilidade de transporte de capim de outro tekoá, por exemplo, já que não há esse recurso no ecossistema local. Outra sugestão foi o que o tekoá vizinho (Tekoá Ka ?aguy Pau) fez para resolver a questão, usando outra espécie de taquara para recobrir a cobertura da casa de reza (opy) da comunidade, no caso o taquaruçu (Guadua angustifolius) que significa “taquara grande” em Guarani. Porém, de acordo com o relato de um Mbyá desse tekoá, foi mais difícil do que a taquara-mansa, pois essa tem grande flexibilidade e pequena espessura, sendo mais fácil e simples de manusear.

Cipó (Yxypó)

O cipó denominado pelos Mbyá de yxypó é uma etnocategoria que define uma gama de espécies de cipós nativos que nem sempre tem correspondência na classificação botânica e que são utilizados na construção e em outras atividades, tais como artesanato, medicina e alimentação (FREITAS, 2004). Algumas espécies têm preferência de uso e são referidas como yxypó ete que significa “cipós verdadeiros” em Guarani, como o cipó guaimbé ou wembe ?pi em Guarani (Philodendron bipinnatifidum), segundo Freitas (2004).

Os cipós são fundamentais como materiais construtivos, pois têm a função de estabilizar a estrutura, com técnicas de encaixe e amarração. Esse papel é ressaltado pelos Mbyá na expressão: “o cipó é nosso prego”, segundo exemplifica Zanin (2006, p.122). Na figura 37 está um dos cipós coletado no Tekoá Nhüu Porã e sua utilização no enlaçamento dos elementos que compõem a estrutura de vigas e pilares da casa de xaxim.



Os Mbyá têm um cuidado e respeito com o manejo dos cipós, assim como qualquer espécie vegetal que coletam nas matas. São encontrados em maiores quantidades em ambientes alterados pelo homem, tais como interfaces de bordas de mata, capoeira e beira de estradas, segundo Freitas (2004). Essa autora explica que os Mbyá têm conhecimentos sobre as formas adequadas de coleta, pois priorizam espécies retas e maleáveis, com o corte feito próximo à altura do joelho para que se mantenha a raiz, permitindo, assim, que brotem de novo (FREITAS, 2004). Ladeira e Felipim (2005, p.45) exemplificam esse fato com o relato de um Mbyá sobre a coleta de cipós em seu tekoá: “A gente tira mais cipó adulto. O novo fica. Com o tempo, aquele que a gente tirou fica bom de novo para tirar. Ele não acaba assim. Ele vem como um ser humano, cada vez mais cresce o cipó”.

Cabe citar que nem todos os tekoá têm acesso às espécies preferenciais de cipó (yxypó eté), pois necessitam de outras plantas em áreas de mata para se apoiarem e crescerem em direção ao sol. Porém, nem todas as áreas indígenas têm áreas de mata com abundância de recursos naturais e, assim, nem todas as casas são construídas com os yxypó eté. Em função disso, os Mbyá acabam buscando alternativas com outros materiais, tais como tiras de tecido e couro reciclados ou pregos e arames comprados. Mas nessas situações, há relatos que apontam os Mbyá pedindo perdão a suas divindades por estarem utilizando elementos que não são tradicionais e sim industriais, os quais consideram “que não tem alma”, como fala Morinico.

Terra crua (Yvy)

A terra crua denominada yvy em Guarani é encontrada em todos os pisos das casas construídas pelos Mbyá, possuindo um valor simbólico essencial na cosmologia Mbyá. Também é usada como revestimento das paredes de pau-a-pique na maioria dos tekoá do RS, chamada de yvy ó (ZANIN, 2006). O uso da terra como piso possibilita o tradicional fogo de chão e como revestimento aumenta o isolamento térmico da casa. No Tekoá Nhüu Porã, todas as casas possuem o piso interno de terra crua, ou melhor, de solo apilonado, o que possibilita o contato direto com o solo, além do fogo de chão. Nesse tekoá também foram identificadas algumas casas com um pouco de terra crua como revestimento de partes das paredes, porém com uso provisório, posto que o padrão local são as paredes de xaxim.

Cabe ressaltar que a terra crua é considerada tão importante quanto qualquer espécie vegetal na perspectiva Mbyá. Cita-se como exemplo a oportunidade do acompanhamento da construção de uma feita pelos Mbyá para ser exposta na Bienal de Arte do Mercosul cidade de Porto Alegre em 2007, a qual se caracterizava por ter paredes de pau-a-pique revestidas de terra – típica dos demais tekoá do RS. A terra do revestimento dessa casa foi retirada do tekoá da capital (Tekoá Anhetenguá) e fora exigida de volta ao mesmo local a fim de retornar à cava feita para sua extração. Os Mbyá justificaram essa exigência explicando que para eles a terra tem um espírito próprio e, assim, esse espírito “deveria retornar ao local de onde saiu”, assim como todas as espécies vegetais que empregam na construção, segundo Morinico - cacique desse tekoá e responsável pela obra.

Assim, os materiais construtivos que os Mbyá empregam em suas construções são considerados mais que elementos funcionais, pois cada espécie vegetal ou mesmo uma parcela de terra crua possui um valor simbólico significativo e específico, de acordo com a perspectiva Mbyá. Constata-se que dão grande importância para as relações entre os elementos que compõe a casa, visto que cada um se refere a entidades que contribuem no processo de criação do espaço construído parta esse povo indígena.

Fonte: http://hdl.handle.net/10183/17025

- Veja também:
Construção de uma casa Mbyá

Um comentário:

  1. A ignorância é inimiga da diversidade, O xaxim é uma arvore em extinção no mundo inteiro Parem de destruir a natureza sem necessidade

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