6 de dezembro de 2011

Autossustentabilidade

Por Adrian Rupp

A ideia de autossustentabilidade é muito criticada. Dizem que é um conceito inválido, já que é impossível uma comunidade se manter sem usar algo exterior como um objeto produzido numa outra comunidade, ou mesmo a energia do Sol, que vem de fora do planeta. Além disso, argumentam que a autossustentabilidade leva ao isolamento e à todos os problemas relacionados a ele.

Porém minha ideia de autossustentabilidade é um pouco diferente e mantem as qualidades como a segurança, autonomia, liberdade, soberania, etc.
Creio que a questão não seja simplesmente recursos próprios x recursos externos, mas de que recursos estamos falando especificamente.
Por exemplo, uma comunidade não ser capaz de produzir seus próprios computadores não afeta sua segurança, autonomia, etc. da mesma forma que afetaria se a comunidade não fosse capaz de produzir seus alimentos.
Isso é uma questão muito séria. É a diferença entre buscar algo no mercado levado por um interesse ou pela sobrevivência. É a diferença entre viver livre ou preso a uma chantagem, entre viver seguro ou em constante ameaça.

O Sol é um recurso disponível para qualquer comunidade. Ela não precisa se sujeitar de nenhum modo para ter acesso a este recurso. Portanto a energia do Sol é um recurso próprio assim como águas da chuva, e outros tantos recursos naturais que uma comunidade pode aproveitar sem estabelecer uma relação de dependência com outras instituições. A água de rios pode ser usada por uma comunidade que fica rio acima sem prejudicar uma comunidade que fica rio abaixo e que também deseja aproveitar esta água. Porém há esforços para comercializar e estatizar tudo o que existe, de modo a ampliar a centralização de poder e a dependência.

Creio que só este entendimento pode viabilizar futuras comunidades humanas fora da Terra. Porém, como já deixei claro, há motivos para qualquer comunidade humana buscar este ideal. Quanto mais avançamos no planejamento futuro, mais complexos são os desafios que a humanidade irá enfrentar como queda de meteoros gigantes, epidemias violentas, uma nova era do gelo, e até mesmo o fim da Terra como habitat humano. Uma organização humana em comunidades autossustentáveis é a melhor resposta possível para a infinidade de ameaças possíveis. Deste modo mesmo que algo derrube 99% da humanidade, nossa espécie ainda sobreviveria. Basta uma comunidade autossuficiente sobrevivente para reerguer toda nossa espécie. Enquanto que na crescente interdependência a nível mundial estamos condenando nossa espécie a extinção.


Classificação de autossustentabilidade material

Agora vou apresentar o segredo por trás de vários textos que publiquei neste blog. Como ver as coisas que nos cercam a partir da ótica da autossustentabilidade.

Imagine que em uma cidade de repente todos os mercados fecham por algum motivo. O fornecimento de água, luz, combustíveis é interrompido.
- As informações que estão no computador estão inacessíveis já que não há eletricidade. Porém o que estava registrado no papel pode ser lido.
- Não será possível tomar banho, preparar alimentos, etc. por falta de água. Porém quem recolher água da chuva e souber fazer a purificação terá água.
- O carro não se movimentará, porém quem tiver uma bicicleta ainda poderá se locomover bem.
- A comida que as pessoas tem em suas casas acabará rapidamente. Porém quem tiver uma horta e saber reconhecer as plantas alimentícias que estão nas ruas terá melhores condições.
Note que alguns itens faltam e outros se tornam inúteis neste quadro extremo. Há diferenças sérias em como somos afetados com estas diferentes ausências. Um martelo não vai desaparecer como aconteceu com a comida, nem vai deixar de funcionar como ocorreu com o carro. Nosso nível de dependência varia conforme a natureza do item. E esta é a base para esta classificação.

Observe que não é necessário chegarmos a este quadro extremo para que a autossustentabilidade se mostre interessante. Basta que um determinado item por algum motivo atinja um preço absurdamente alto. Ou mesmo imagine um modo de vida de custo extremamente baixo que permite viver confortavelmente mesmo num emprego de baixa remuneração, ou trabalhando poucas horas por dia. Assim viramos a mesa e acaba a chantagem por nossa sobrevivência. Simplesmente sobreviver se torna mais fácil e barato, e portanto não precisamos nos sujeitar tanto para estarmos bem.

A)Itens Consumíveis:
São as coisas que só usamos uma vez ou se tornam inúteis rapidamente. São os itens mais importantes de serem produzidos na comunidade.
Exemplos: Comida, temperos, remédios, água, papel, sabões, fios, eletricidade, tintas, colas, lenha, velas, gás, álcool, combustíveis, etc.
Uma comunidade não precisa produzir tudo que citei, cada comunidade faz suas opções tecnológicas particulares. Uma comunidade que produz eletricidade pode não precisar produzir velas (ou vice-versa), por exemplo.

B) Itens Alimentados:
Aqui entra os eletroeletrônicos e tudo que precisa de eletricidade, gás, água, ou outro tipo de combustível para funcionar. Nestes casos o importante é a capacidade de alimentar estes equipamentos com recursos próprios e possuir peças sobressalentes e pessoas com conhecimento para fazer a manutenção.
Exemplos: Computador, fogão à gás, fogão à lenha, liquidificador, walkie-talkie, carro, carroça, bicicleta(ar comprimido), etc.
Não precisar destes itens pode ser entendido como uma autossustentabilidade maior. Creio que mantendo eles funcionando já estamos sendo suficientemente autossustentáveis, e não é necessário abandonar as máquinas. Com manutenção, alimentação e peças sobressalentes as máquinas podem durar décadas. E mesmo que chegue o momento fatídico onde uma máquina está irrecuperável, pode se tomar precauções para que isto não signifique o fim da comunidade.
Algumas máquinas possuem geradores de energia próprios como os relógios à corda e as calculadoras movidas à luz. Isso é muito interessante em termos de autossustentabilidade, pois elimina a preocupação com a produção de energia.

C) Itens Duráveis
Estes são os que demandam menos preocupações. É claro que é interessante uma comunidade produzir este tipo de item, mas isso não vai impactar a autossustentabilidade como os demais itens. Basta fazer a manutenção com recursos próprios.
Exemplos: Casas, móveis, roupas, calçados, talheres, potes, ferramentas, etc.

Se prestarmos atenção nas tecnologias que são cultuadas no império ocidental, normalmente são tecnologias que ampliam nossa dependência e reduzem nossa autossustentabilidade. Já que chamam de alta tecnologia este desenvolvimento que visa aumentar nossa dependência, é natural que a autossustentabilidade seja relacionada a uma 'baixa' tecnologia ou a uma volta ao passado. Mesmo que tecnologias como software livre, hardware livre, redes mesh, fogões solares, etc. são exemplos que sabotam esta dicotomia, já que se tratam de tecnologias atuais que podem reduzir nossa dependência.


Dinheiro

Autossustentabilidade é manter-se com recursos próprios. Quando uma comunidade usa dinheiro para comprar comida, por exemplo, alguns acreditariam que tal comunidade é autossustentável. Porém isto é falso: o dinheiro não é um recurso próprio, mas um recurso governamental emprestado para a população para facilitar trocas, cobrar impostos e a concentrar poder.
Buscar a autossustentabilidade é uma atitude anticapitalista já que reduz também nossa dependência do dinheiro.
Neste ponto encontramos um conflito entre o capitalismo e a busca humana por segurança, liberdade e até mesmo sobrevivência.
Na medida em que cresce a dependência diminui a segurança. Se precisamos de mais um aparelho para continuarmos vivos, a linha que sustenta a vida se tornou mais fina. E assim até a extinção da vida ou mesmo de nossa espécie.
A autossustentabilidade torna a sustentação de comunidades e de nossa espécie mais sólida.


Porque o nível comunitário?

Uma pessoa pode ser autossustentável como no exemplo de Robinson Crusoé, vivendo com o mínimo de conforto e em condições extremas. Porém só será autossustentável no seu tempo de vida e não é capaz de se sustentar para além dele. Ou seja, o individuo é uma unidade inválida para a autossustentabilidade.
Um casal poderia adquirir uma qualidade de vida maior e até gerar descendentes, mas estes teriam que manter relações incestuosas e viveriam uma pobre vida social. A vida humana estaria por um fio e provavelmente desapareceria com o tempo.
Várias famílias reunidas atingem um nível ainda maior de conforto e segurança, e dependendo do número de pessoas, é possível manter a variabilidade genética e resistir a doenças e outros problemas. Chegamos a uma unidade humana que é capaz de manter nossa espécie indefinidamente: A comunidade.
Muitas comunidades reunidas num espaço pequeno e já temos uma cidade. Porém agora já temos muito mais pessoas do que trabalho, temos um abismo de poder entre as pessoas muito maior, temos relações sem laços afetivos e um grande anonimato que permite a criminalidade. As pessoas perdem seu valor. A cidade é basicamente uma comunidade que engordou demais, deixou de ser rápida e dinâmica para se tornar pesada e insustentável.

Estes quadros que pintei de isolamento são apenas modelos teóricos. Não é necessário estar isolado para ser autossustentável. Porém o isolamento se torna viável com a autossustentabilidade. O isolamento é uma situação extrema que deve ser evitada, mas pode ocorrer, e de fato irá ocorrer com diferentes comunidades. A primeira comunidade humana fora da Terra estará isolada na maior parte do tempo. Mas mesmo aqui, basta uma ponte cair e se somar a outro imprevisto para termos uma comunidade isolada.

As pessoas se organizam em cidades por diferentes motivos ao longo da história, mas atualmente é basicamente para facilitar a exploração e controle da população.
Quando pensamos numa unidade humana autossustentável não pode haver faltas nem excessos. Uma família significa falta (mão de obra, variabilidade genética, vida social), e uma cidade significa excesso (pessoas(desvalorização), distancias, consumo). Assim chegamos na comunidade. Claro que toda a comunidade saudável produz excedentes, mas quando procuramos a unidade humana autossustentável, estamos pensando na organização humana mínima capaz de se manter indefinidamente e o excesso seria uma organização humana maior, no caso a cidade.

Normalmente quando pensamos em cidades pensamos numa vida rápida e dinâmica, mas isso é uma ilusão. Veja a mesma cidade sem consumo de combustíveis fósseis: temos uma jornada épica até o local de trabalho, até o mercado, até a casa de um amigo, etc. Numa comunidade as distâncias são irrelevantes na comparação. Podemos ir da oficina até nossa casa dezenas de vezes num dia, por exemplo. O mesmo vale para as telecomunicações, e é por isso que cidades são armadilhas: Na medida em que os recursos estão se esgotando os preços vão aumentar, tornando as pessoas completamente dependentes do dinheiro. Não há espaço para a agricultura e ninguém consegue realmente sustentar seu modo de vida: apenas é sustentado, em retribuição pelo trabalho realizado em favor do império. Dificilmente alguém recebe um salário para ensinar técnicas de autossustentabilidade, o que ocorre normalmente é exatamente o oposto: milhões são remunerados para tornar os demais cada vez mais dependentes, seja de hospitais, médicos, supermercados, governos e empresas. O conhecimento que liberta viaja e cresce livremente entre as comunidades autossustentáveis, enquanto que é subterrado numa montanha de informações inúteis com alta publicidade em qualquer cidade capitalista.

Quando buscamos a unidade humana autossustentável estamos pensando em quantas pessoas são necessárias para colonizar uma região inóspita da Terra, quantas pessoas são necessárias para repovoar o planeta após uma catástrofe. Em outras palavras, como podemos nós organizar de modo a garantir a sobrevivência indefinida de nossa espécie? A resposta: Cada unidade humana deve ter condições de sobreviver isolada e repovoar a Terra se for necessário, e além disso, precisamos a maior diversidade de culturas e habitats possível.

Muitos falam sobre as vantagens da interdependência. Mas na prática é como colocar todos no mesmo barco e quando o barco afundar todos vão morrer juntos. Para alguns isso é solidariedade, mas de fato seria se cada um tivesse o seu barco e pudesse resgatar os náufragos. Interdependência é quando uma comunidade se sente segura numa chantagem só porque também é capaz de chantagear. Emfim, só faz sentido numa civilização que valoriza e busca o conflito. Já escrevi sobre as relações intercomunitárias e está bem claro para mim que a interdependência dentro de uma comunidade é normal e saudável, mas perigosa se for entre comunidades ou federações de comunidades.

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